quarta-feira, 4 de maio de 2011

Ler, reflectir, para através do pensar, agir...


EDUCAÇÃO E COMUNIDADES HUMANAS  REVIFICADAS -  UMA VISÃO DA ESCOLA SOCIALIZADORA NO NOVO SÉCULO

Roberto Carneiro
 
 
Se o século que está preste a encerrar evidencia profundas feridas, o novo tempo que se abre com o início do século XXI está imbuído de esperança. Será notoriamente um tempo de novas exigências sociais, onde a arte de viver juntos surge como meio de cicatrizar aquelas múltiplas feridas que, no século XX resultaram do império do ódio e da intolerância.
 
A humanidade mal se reconhece no espelho deformante onde aparecem como estigmas os males de que sofrem nossas sociedades. O novo curso da história que, desde 1989, tem provocado o triunfo de uma lógica econômica implacável, baseada na lei do mais forte e subordinada às exigências de um neoliberalismo sem alma, impõe necessariamente um sobressalto de nossa consciência, um despertar ético ante a questão social fundamental que o aumento das desigualdades no mundo constitui. Trata-se de uma equação complexa, definida por um conjunto de variáveis, sendo as principais entre elas as seguintes:
 
  1. Sintomas preocupantes de “fadiga” social decorrente de situações de extrema pobreza (poverty fatigue).
  2. Uma nova miséria de dimensões múltiplas na qual o efeito de factores multiplicadores de pauperização se acelera no plano cultural, material, espiritual, afectivo e de cidadania. 
  3. O declínio do capital social numa sociedade que cultiva o risco e onde prevalecem pulsões individualistas e destruidoras da confiança nas relações interpessoais. 
  4. O carácter conflitual e vertical das relações sociais, determinadas por uma lógica que se exerce em múltiplos sentidos e corresponde à acção de diversos grupos de interesse, bem como a progressiva substituição da luta de classes por conflitos étnicos ou religioso-culturais anuncia a eclosão de movimentos tribais de grande envergadura. 
  5. O abandono do espaço cívico, fundador de civilização, a um mercantilismo exacerbado, gerador de dualismo e exclusão.
  O século XXI enfrenta, assim, o seu maior desafio: o da reconstrução das comunidades humanas. Abundam os sinais de impaciência; as sociedades humanas pressentem que uma projecção linear das pesadas tendências do século que se aproxima do seu termo não augura um destino feliz. À massificação e ao individualismo que caracterizaram a primeira geração de tecnologias da informação e da comunicação, levando ao paroxismo o modelo económico triunfante, sucede-se, no momento, uma segunda geração tecnológica em que se começa a recuperar a ideia de interacção em redes bem como o valor das relações de vizinhança (virtual). A sociedade cognitiva assentada na ética da partilha do conhecimento e em fenómenos de cognição que brotam de relações interpessoais sem fronteiras, que se tornaram possíveis pela globalização do planeta, afigura-se favorável ao alastramento de valores pós-materialistas. 

 Assim, a solidariedade e o novo espírito comunitário podem ressurgir naturalmente como princípio orgânico e organizador de vida, como alternativa à exclusão e à desvitalização suicida do tecido social. Neste quadro, as instâncias básicas e estáveis de socialização como a família e a escola são reconvocadas a reassumir o seu papel nuclear na implantação dos alicerces duradouros da sociedade do futuro. 

 Educar sempre foi e continua a ser hoje uma tarefa eminentemente social. A formação da personalidade madura resulta tanto do fortalecimento da autonomia pessoal como da construção de uma alteridade solidária, ou seja, do processo de descoberta do outro como atitude moral. A humanização concebida como crescimento interior do indivíduo encontra seu pleno desenvolvimento no ponto onde se encontram de modo permanente os caminhos da liberdade e da responsabilidade. Os sistemas educativos são fonte, simultaneamente, de capital humano (Becker), capital cultural (Bourdieu) e capital social (Putnam). Das cinzas do homem lobo do homem — homo homini lupus — pode nascer o homem amigo do homem — homo homini amicus — graças a uma educação pessoal e social fiel à sua intencionalidade comunitária. 

 A tarefa é gigantesca e o mandato indeclinável visto que dele depende a construção da nova ordem social no século vindouro. Mas é, sobretudo, pela formação para a justiça que se pode reconstituir o núcleo de uma educação moral das consciências que supõem uma cultura cívica feita de inconformismo e de recusa perante a injustiça e capacitem para uma cidadania activa em que a responsabilidade de intervenção se substitua a uma mera cidadania por delegação. Na verdade, é pela apropriação do sentido da justiça abstracto (equidade, igualdade de oportunidades, liberdade responsável, respeito pelos outros, defesa dos mais fracos, apreço pela diferença) que se criam as atitudes psicológicas que predispõem para agir de maneira concreta pela justiça social e em defesa dos valores da democracia. 

 Partindo-se do princípio de que a educação é um bem público (ou, no mínimo, quase público), a escola deve ser considerada, antes de tudo, como uma instituição social ou, mais exactamente, como pertencendo à sociedade civil. 

 Tomando por referência a teoria filosófica de Hannah Arendt, são três as esferas constitutivas da vida social: esfera pública, esfera de mercado e esfera privada. Enquanto compete à primeira sustentar os valores da equidade, Arendt considera que o mercado e o mundo do trabalho conduzem à discriminação, ao passo que a esfera privada é marcada pela exclusão que é o corolário de escolhas individuais. 

 A partir destes conceitos fundamentais a escola, independentemente de seu estatuto específico - privado, cooperativo ou governamental -, é tipicamente uma esfera de acção pública como ambiente e locus de socialização, sem deixar de contribuir, simultaneamente, para as esferas económica e privada, através da acumulação de qualificações e de capital humano que ela produz. Em sociedades cada vez mais complexas e multiculturais, a emergência da escola como esfera pública acentua a sua relevância insubstituível na promoção da coesão social, da mobilidade humana e da aprendizagem da vida em comunidade. 

Efectivamente, é pela edificação de comunidades educativas plurais, regidas por regras de participação democrática, onde a negociação dos diferentes pontos de vista se privilegia como método e se recusa a violência ou o autoritarismo como formas de resolução dos conflitos naturais, que se educa para uma plena cidadania. Neste quadro, a tolerância passiva cede o passo à acção afirmativa com relação às minorias, enquanto se postula como objectivo básico da formação democrática o acesso equitativo de todos aos direitos políticos fundamentais. A uma tradição de liberdades individuais, matriz sobre a qual se sustenta a textura democrática actual, pode acrescentar-se, com benefícios substanciais, um novo civismo de liberdades colectivas traduzido no respeito por formas de ser, de estar e de acreditar diferentes e na coexistência pacífica e mutuamente enriquecedora de comunidades diversas. 

 Nesta mesma escola, que constitui um pilar essencial da educação ao longo de toda a vida, adquirem-se também as competências básicas para a socialização permanente, isto é, para a consolidação de culturas resistentes à exclusão, assentadas em atitudes proactivas e capazes de reinventar a cada etapa novos e mobilizadores papéis sociais. A educação e a realização seguem juntas ao longo de toda a vida. 

O novo século é, em essência, sinónimo de horizonte de nova esperança. Uma esperança que, por ser eminentemente humana e humanizadora, elege a prioridade educativa como sua aliada incontornável na edificação de uma nova ordem social onde todos contam e cada um possa ser capacitado para participar activamente num processo de desenvolvimento que, para o ser, recupera a centralidade da pessoa na sua mais plena e inviolável dignidade.
 
in: “Educação – um tesouro a construir” – MEC, 2000. pp.221-224.

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